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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

[agência pirata] EXTREMOS MUSICAIS



::txt::José Miguel Wisnik::

Demorei para ler “O resto é ruído — Escutando o século XX”, de Alex Ross, cuja tradução foi lançada no Brasil em 2009. Outras prioridades e compromissos me afastavam desse livro que eu tinha muitos motivos para querer e precisar conhecer. É uma história da música clássica, ou de concerto (sempre é difícil saber como chamá-la), no século XX, e, sob muitos aspectos, uma história do século XX através das agruras estéticas, econômicas e políticas da música clássica. O que o livro tem de mais forte é a rica e mesmo espantosa contextualização da composição musical em momentos sucessivos do contundente teatro da história contemporânea. Numa sequência frenética e quase novelesca desenrola- se aos nossos olhos e ouvidos o mesmo século que Hobsbawm chamou de “a era dos extremos”, embora visto em “O resto é ruído” de um ponto de vista especificamente norte-americano.

O rito da música de concerto, inventado na Europa, ocupava um lugar central entre as elites no começo do século, quando personalidades de todos os cantos e campos acorriam às estreias de Richard Strauss e de Gustav Mahler. Esse lugar simbólico prestigioso já se debatia, no entanto, com as estridências veristas de um, cheias de impacto escandaloso e de sedução sadomasoquista, e com as dimensões algo rebarbativas, complexas, profundas e inquietantes do outro. Elas anunciam de algum modo, em escala finissecular e tardo-romântica, os tremendos abalos das primeiras vanguardas, que virão como atonalismo de Schöenberg e o quebra-quebra de ritmos e de politonalidades da “Sagração da primavera” de Stravinski. Alex Ross combina essas referências clássicas da história da música com a cena fremente da Berlim desvairada dos anos 1920, com as experimentações norte-americanas e as influências do jazz (de Charles Ives a Duke Ellington), e com a figura solitária e sintomática do finlandês Jean Sibelius, que, ao lado de cair no agrado do público como o espécime raro de um sinfonista remanescente, parecia viver mergulhado, ele mesmo, na angústia insolúvel de saber-se pertencente a um mundo sem futuro.

Em suma, o sintoma da música clássica, na primeira parte do século XX, foi o escancaramento da experiência tanto excitante quanto traumática do choque, a permear a vida nas cidades, e a instauração de um sentimento do mal-estar na civilização no coração dessa arte que guarda a fama de ser angélica, embaladora e consoladora.

O nó do século, no entanto, envolve os destinos cruzados da música no contexto stalinista, no contexto nazista e no contexto da sociedade de mercado norte-americana, no período que vai de 1933 a 1945. A União Soviética de Stalin, a Alemanha hitlerista e os Estados Unidos de Roosevelt impõem à produção musical exigências e limites totalizantes que Ross trata com luxo de detalhes. Enquanto na Rússia as normas do Estado devem servir de modelo férreo para a arte musical, na Alemanha de Hitler é o Estado que deveria realizar o modelo delirante de uma obra de arte total de inspiração wagneriana (é hilariante e tétrico saber que Hitler gostava de se comportar às vezes de maneira quase servil perante artistas que o nazifascismo é capaz de submeter ao mesmo tempo à perseguição implacável).

No cenário norte-americano trata-se de importar, acomodar e adaptar ou reinventar essa arte europeia aos modos dos meios de massa e do mercado. A lista dos mais loucos experimentadores musicais nos Estados Unidos, criando sistemas musicais heterodoxos, instrumentos malucos e teorias, na primeira metade do século, impressiona pelo frescor e pela vitalidade de uma cultura da bricolagem e da mixagem de influências, típica das Américas e muito diferente da vetusta Europa. Simpatias comunistas entre músicos, como em Aaron Copland, o mais reconhecido compositor americano do período, pontuam o New Deal, numa diversidade ideológica e estética que será erradicada com a Guerra Fria.

Assim segue a história, tratando, no pós-guerra, da vanguarda francesa capitaneada por Pierre Boulez, das intervenções únicas de John Cage, de Messiaen, do minimalismo de Steve Reich e Phillip Glass, e das confluências das criações da música de concerto com ramos do pop-rock mais recente. São 600 páginas cheias de erudição jornalística de alto nível. Incorporam uma massa de informações biográficas e situacionais em várias esferas, em que as batalhas pela recepção, as tentativas, os fracassos e os feitos, os jogos de poder em grande e em pequena escala, incluindo as fofocas, associadas com muitas e valiosas indicações musicais, dão um quadro da vida musical no século XX como não se tinha. Eu confesso que li como se fosse um romance policial, não porque se esgote na superfície da trama, mas porque associa um conjunto de dados que aumenta, sem deixar de ser uma narrativa romanesca, o entendimento de questões de fundo da cultura contemporânea, das quais a música é um grande índice.

O tratamento das questões filosóficas e literárias (quando passa por obras de peso como as de Adorno e Thomas Mann) se ressente da falta de ter como ir fundo. Aqui, o jornalismo americano não tem o mesmo rendimento de quando contextualiza. A má vontade com as vanguardas da segunda metade do século, hoje saídas quase totalmente de cena, mesmo que fossem tratadas como um sintoma vigoroso do século, resulta reducionista. Os dramas e tragédias da própria linguagem musical não estão no centro. Mas há muito o que ler em “O resto é ruído”.

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