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sábado, 4 de junho de 2011

[agência pirata] GUY BOURDIN E A FALSA ARTE DA MODA



::txt::João Pedro Wapler::

A moda sacraliza a beleza sem parar e faz dela um bem mercantil altamente excitante e indiscutivelmente fugaz. O Belo brota na velocidade da luz e some mais rapidamente ainda. É uma tarefa árdua codificar o deslumbramento e medir o seu prazo de validade. Salvo a Kate Moss, a Sophia Loren, a Vera Fischer e a Catherine Deneuve, não existe beleza eterna. Uma musa do cinema é um padrão estético por certo tempo e depois o máximo que pode virar é uma grande dama do teatro ou um depósito interminável de Botox. Uma modelo também tem diversas vezes um fim trágico: como os jogadores de futebol, depois dos 35 anos elas acabam virando empresárias ou apresentadoras de televisão. Toda glamourização anda de mãos atadas com a decadência. Toda realeza um dia tem as suas cabeças cortadas.

A Casa de Cultura Mario Quintana recebe a Réctrospective Guy Bourdin, uma exposição dos trabalhos produzidos pelo consagrado fotógrafo francês que trabalhou por mais de 30 anos para a revista Vogue francesa. Bourdin foi um dos precursores da fotografia no mundo da moda, misturando foto e arte contemporânea. Através de suas técnicas ousadas, ele concebeu um universo alegórico. Cingindo a moda e a fotografia como suas plataformas de criação, o fotógrafo explorou o surrealismo de forma sagaz.



Bourdin soube captar com maestria os paradoxos da indústria da beleza. Ele notou o que há de podre na exaltação exagerada e puramente mercadológica do Belo. As mulheres clicadas por ele nunca parecem reais. A visão surreal da forma feminina é um artifício utilizado pelo fotógrafo para estetizar o maniqueísmo da indústria da moda. Ele revela a outra face do glamour. As suas modelos são Cinderelas que já retornaram da noite e livres do feitiço voltaram para casa sem príncipe e sem sapatos.



O desvanecimento do Belo às vezes é ainda mais radical em suas fotografias, principalmente quando as suas imagens tangenciam a morte e o sangue. As modelos se transformam em pedaços de carne libidinosos. Elas atingem o orgasmo e depois caem duras no chão. Elas trepam e matam, beijam e sangram, amam e desprezam… Em raros instantes criativos o fotógrafo chega a flertar com o lirismo, mas mesmo nesses casos o gênero feminino não alcança nenhuma aura de pureza: as mulheres sempre são reflexos bem compostos do que seria um ideal de beleza.

A exposição também contempla outras vertentes criativas do fazedor de imagens. Há uma galeria exclusivamente dedicada às criações mais autorais do francês, reunindo diversos experimentos fotográficos que expandem o universo de percepções desenvolvido por ele. O grande mérito das fotos é lidar com o pervertido limite editorial entre a livre criação e a ideologia camuflada por trás de cada marca. Quando cito marca busco sintonizar tal termo com outro ainda maior: a indústria da moda. Visto que cada revista de moda é antes de tudo uma poderosa porta-voz das grandes grifes.



Uma das primeiras associações culturais que surgiram na minha cabeça após digerir todo o surrealismo de Bourdin foi a lembrança de um livro: A Publicidade é um cadáver que nos sorri, de Oliviero Toscani, que durante vários anos fotografou as campanhas publicitárias da Benetton. A grife italiana foi uma das primeiras empresas de vestuário a utilizar em seus anúncios fotos chocantes, totalmente dissociadas do universo fashion e que não continham nenhuma menção aos produtos da empresa. É comum em todas as revistas de moda haver um espaço reservado para fotografias mais artísticas. Esses famosos editoriais possibilitam uma fuga da foto direcionada exclusivamente para a peça de roupa. Nesses ensaios há um conceito que permeia toda concepção visual da fotografia além de uma espécie de cena que é construída, assemelhando-se à concepção de um plano cinematográfico. O fantástico do trabalho de Bourdin é que ele subverteu tremendamente a função do dito fotógrafo de moda. Mesmo que muitos fotógrafos agreguem elementos artísticos aos seus trabalhos comerciais, é raro que fujam da lógica da promoção de uma ideia mercadológica e/ou produto.



Bourdin foi contra o status quo. Suas imagens estão impregnadas de um desconforto consumista. A cor sedutora das imagens contrasta com a agonia de um mundo excitado e sufocado pelo poder anestesiante do consumo. As mulheres são meros objetos, pedaços de carne descartáveis, que vendem a sua alma ao prazer. Como numa feira livre fashion são oferecidos diversas espécimes femininas, uma mais estonteante que a outra, uma mais artificial que a outra. Mulheres e manequins não são tão diferentes assim para ele. A beleza tem um custo muito alto a ser pago. Ela evapora com facilidade. Ela é substituída por alguma outra coisa. A futilidade emoldura uma sociedade ultraconsumista e ultradescartável.

Abandonados os paradigmas revolucionários da década de sessenta, Bourdin soube decifrar com maestria o alvoroço de uma nova era consumista: a década de setenta. Ele criou a sua estética da beleza e da morte. Do deslumbramento e da decadência. Da sexualidade e da futilidade. Da ilusão estética e da crueza dos fatos. O fotógrafo faleceu em 1991, ou seja nem teve tempo de ver florescer a hiperinflação de imagens que povoam os enunciados consumistas de agora, assim como não pode se deparar com a completa banalização do erotismo. Se já na brilhante e descontraída década de setenta o mundo estava superfaturado de símbolos consumíveis, imagine hoje. Se já naquela década as modelos pareciam manequins, imagine hoje. Como Bourdin faria seu trabalho ser chocante depois de 2010? Suas deusas seriam bonecas infláveis?

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