#CADÊ MEU CHINELO?

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

[agência pirata] SHAKESPEARE, MENOS A POESIA

::txt::Zeca Camargo::

Desta vez, achei melhor disfarçar… Da última vez em que estampei a frase "o melhor filme do ano" no título de um post, provoquei, digamos, um certo desconforto… Era o ano de 2008 – e minha escolha não foi exatamente este filme que você está pensando. Que filme? Bem, a julgar pela ira que despertei nos fãs – quando, no lugar desse previsível (e ligeiramente confuso) sucesso, escolhi um (o horror!) um filme de arte (“Hunger”, de Steve McQueen) –, sinto-me até constrangido em ter de refrescar sua memória. Afinal, o tal filme era supostamente tão bom, teria marcado tanto uma geração, que à menção do ano de 2008, essa produção deveria imediatamente pipocar nas lembranças dos fãs de cinema…

Assim, para você que tem um bom registro cinematográfico – e que, como eu, admirou esse filme nas suas modestas qualidades, sem se influenciar pelo afã coletivo que seu tema despertava –, acho que não preciso falar de novo seu nome. E como é para você que escrevo – você, que tem uma opinião equilibrada e sabe separar sua opinião de um modismo – vamos em frente: vamos falar do filme do ano. Do ano de 2010, claro.

Para ser transparente, vi tão poucos filmes nos últimos doze meses, que tenho que admitir que minha lista de melhores títulos é quase idêntica à relação de produções a que assisti… E, pelo jeito, dei sorte – já que quase tudo foi muito bom. Minha escolha de “filme do ano” é modesta – talvez mais idiossincrática ainda do que a minha relação dos “melhores discos que você não ouviu em 2010” . Mas ela é honesta, de coração – uma vez que poucos filmes mexeram comigo como esse que vou citar em breve.

Reconheço que é uma petulância escolher uma produção tão pequena e despretensiosa – que certamente não vai figurar em nenhuma lista de “melhores do ano” de nenhuma publicação importante (talvez nem mesmo de um blog relevante). Mas nenhum filme que vi este ano falou tanto comigo como esse. Talvez “Toy story 3”, já que esse é o filme “teoricamente” feito para crianças mais cruel que um adulto poderia assistir. Como escrevi em junho, o desenho é uma grande parábola sobre rejeição, mas elaborada de maneira tão brilhante, que ninguém sai do cinema achando que passou por uma lição de moral. Pela sutileza com que essa mensagem é passada, pelas boas risadas, e pela esperança de que as crianças que hoje se divertiram com ele vão, no futuro rever “Toy story 3” com outra perspectiva – quem sabe junto com seus filhos? –, esse filme entra, com louvor, na minha lista de melhores do ano.

(Uma rápida satisfação: ao contrário do que fiz com os discos, não vou separar minhas escolhas por itens. Eu já deveria saber disso, mas fui lembrado – pelos comentários mais superficiais – que algumas pessoas têm preguiça de ler um texto completo, e preferem julgar minhas preferências apenas pelas primeiras linhas, ou mesmo, apenas por um título. Vários foram os que escreveram sobre o post anterior deixando claro que desconsideravam minha lista, sem sequer ter se dado o trabalho de saber as razões daquelas escolhas… Magoei… E por isso resolvi adotar outra estratégia: falar dos meus filmes favoritos do ano em texto corrido. Quem sabe isso não assusta o leitor mais desavisado? Será que divago? Bem, de volta à sala de cinema!).

Deixar de fora a produção brasileira mais bem sucedida de todos os tempos, seria uma desconsideração muito grande. Incluir “Tropa de elite 2” na minha seleção, porém, não é mero protocolo. Como escrevi em outubro, os méritos dessa “continuação” de uma história de sucesso são muitos: um roteiro melhor, um tema maior, interpretações ainda mais memoráveis que as do primeiro filme – e uma incrível sintonia com o que está acontecendo no nosso país nesse momento. O recorde de bilheteria é mais do que merecido – e empresta um certo prestígio à lista de melhores performances para uma produção nacional… Esclareço: fui só eu que achou curioso que os dois “campeões de venda de ingressos” antes de “Tropa 2” eram “pornochanchadas” ligeiramente confeitadas, tentando disfarçar seu, hum, apelo popular escorados em histórias de grandes escritores (Jorge Amado e Nélson Rodrigues, claro)? Bem, adiante!

Duas preciosidades do começo do ano merecem ser lembradas também. Ambas são de 2009, mas chegaram às nossas telas só em 2010 – então, estão valendo. A primeira é uma das histórias de amor mais tristes que já vi no cinema, que se destaca pela originalidade de ser contada como uma comédia: “500 dias com ela”. Joseph-Gordon Levitt dá nesse filme um salto maior do que todas suas peripécias de desafio à gravidade em “A origem”, e me convenceu de que dentro de todo “mané” existe um coração… A segunda é “O segredo dos seus olhos” , o título argentino que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, mas cujos méritos vão muito além de uma estatueta. Seu retrato de uma Argentina claustrofóbica e assustada é estampado numa trama sofisticada e com um desfecho surpreendente – ligeiramente boicotado pelo epílogo deveras longo. “Segredo” é tão bem elaborado que eu tenho vontade de mandar para uma meia-dúzia de roteiristas para eles perceberem que não precisa ir estudar na Califórnia para vir com um bom script – aqui do lado mesmo, nosso “hermanos” dão o exemplo de que basta gostar da linguagem de cinema para fazer um produto de qualidade.

Por falar em roteiro de qualidade, em maio elogiei – e agora reforço – o trabalho de adaptação de “Os homens que não amavam as mulheres”. Sou um fã relutante dos livros de Steig Larsson, mas mesmo assim estava preocupado com o que poderia se perder nessa transição. Mas a produção sueca – de um diretor desconhecido para o grande público, e com um elenco idem – me deixou mais que satisfeito. E apavorado. A personalidade de Lisbeth Salander (a bizarra heroína da saga) foi encarnada com precisão por Noomi Repace – e Rooney Mara, que brilhou em “A rede social” (já chego lá), tem uma responsabilidade e tanto em segurar essa onda quando vier a versão hollywoodiana da história. Mas, como quem vai encarar o desafio de dirigir essa versão é David Fincher, respiro aliviado. Falando nele…

Tinha tudo para ser muito chato: uma história de dois garotos que inventaram um novo negócio multibilionário na internet? Não obrigado! Mundo virtual e cinema raramente combinam, mas em “A rede social” essa união deu muito certo. E a direção de Fincher, certamente, tem parte nisso. Não sei do que gostei mais: dos diálogos disparados como metralhadoras, das performances precisas e sem exageros, da estrutura desafiadora do roteiro, da construção de um personagem quase “demoníaco” (Eisenberg)… Só sei que o filme é quase perfeito – e vai ser um prazer ver ele colecionando estatuetas nessa temporada de prêmios.

Nos documentários – gênero do qual fomos bem servidos este ano –, dois destaques. Um inédito ainda por aqui (no circuito comercial), mas que tive a chance de ver numa viagem recente a Nova York: “Waiting for Superman” LINKI PARA http://www.waitingforsuperman.com/. Há semanas procuro uma brecha para falar dele no blog, mas acho que vou ter que deixar para 2001 – quem sabe quando (e se) ele estrear por aqui. É – para usar uma expressão que crítico de cinema gosta muito – um “retrato devastador” de como funciona a educação pública nos Estados Unidos. Para nós, brasileiros, que temos pouquíssimos motivos para nos orgulhar do nosso próprio sistema de educação – a professora Mirza, que é o personagem central de uma série que estou fazendo no “Fantástico”, é uma delas (perdão pela “cabotinagem”) – o filme é ainda mais chocante: se lá a situação é trágica, que esperança podemos ter? Mas vamos discutir isso melhor em outra ocasião…

O outro bom documentário do ano é “Uma noite em 67”. Um registro único – e não estou falando, claro, dos clipes musicais, que todo mundo já viu à beça, mas das entrevistas nos bastidores do festival de música daquele ano. Um ótimo retrato, não só de um momento musical único na história da MPB, mas também de uma geração – e até de uma fase muito peculiar da evolução da TV. Vi que ele acaba de sair em DVD – e, como sei que as chances de você ter visto no cinema (por conta do lançamento limitado) são poucas, eu recomendo fortemente que você o coloque na lista de sugestão de presentes para ganhar do seu amigo secreto (ou “oculto”…).

Com “67”, minha lista está quase completa. Mas falta, sei bem, o tal “filme” do ano para mim. E ele é… “Você vai encontrar o homem dos seus sonhos”, de Woody Allen. Eu sei, você já torceu o nariz. Vou tentar me explicar, mas sei que não vai ser fácil. Desde que o vi, na terça-feira passada, já tive sete discussões fortes em torno disso. E consegui vencer apenas duas argumentações, com pessoas que gosto e respeito – e mesmo assim, uma delas, não sei se convenci por inteiro. Ocorre que eu acredito mesmo que esse filme é brilhante. Sensacional. Quase um Shakespeare – só que sem a poesia. Deixe-me prosseguir…

Primeiro, encare “Você vai encontrar” como a obra final de uma trilogia – que começou com “Vicky Cristina Barcelona”, e continuou com “Tudo pode dar certo” . Esses filmes, mais “Você vai encontrar”, é fruto de um Woody Allen enlouquecido, mais velho, mas não exatamente mais maduro, que, finalmente, convenceu-se (e quer nos convencer também) de que nós, pobres humanos, não temos controle algum sobre nossas vidas – nem mesmo sobre o que quer nossos corações. E as consequências desse desvario são sempre imprevisíveis – quando não trágicas…

As relações (perigosas) de “Você vai conhecer” são tão rocambólicas que seria leviano detalhá-las em apenas um parágrafo. Vou apenas “pincelar”: Alfie (Anthony Hopkins) separa-se de Helena (Gemma Jones), para ter uma vida de playboy – que inclui um casamento com uma, hum, atriz… A filha do casal que se separou (Sally, vivida por Naomi Watts) tem um casamento sem graça com um escritor fracassado (Roy, Josh Brolin). Ela se apaixona pelo dono da galeria de arte onde trabalha (Greg, Antonio Banderas), e ele pela vizinha que troca de roupa com a janela aberta (Dia, Freida Pinto). Helena, desesperada, procura uma vidente – na sua opinião, muito mais eficiente do que os terapeutas que ela vinha frequentando. E as “previsões” que ela faz se desdobram – ainda que de maneira indireta – na vida desses personagens maravilhosos.

O que acontece depois que você entende todas essas relações, é o teatro do acaso. Todas as paixões são possíveis, assim como todas as decepções – e acompanhar cada reviravolta dessas histórias é simplesmente fascinante. Esse desgoverno das ações e emoções humanas, só reforçando, começou a ser exposta em “Vicky” – onde, como você bem lembra, nada funciona muito bem… Ou ainda: todas as mudanças propostas pelo destino não são bem aceitas – e o mundo retoma seu curso, com as mesmas manias e loucuras de dantes. “Tudo pode dar certo” tem o mesmo “moto” – mas é, a meu ver, o mais fraco da trilogia, justamente porque Woody Allen, como o título indica, força o roteiro para que tudo termine bonitinho. Os corações também estão a mil nesse filme, e as regras são quebradas todo o tempo. Mas a conclusão é “arrumadinha” demais. As coisas, como aprendemos sempre na prática, nunca são assim… E é com “Você vai conhecer o homem dos seus sonhos” que ele retoma a “Natureza” das coisas – com “N” maiúsculo mesmo, não nossa fauna e flora (e reino mineral!), mas a Natureza dos homes, o acaso, o destino.

Não dá para contar nada desse filme sem tirar o seu prazer de acompanhar cada cena. Porém, no intuito de te preparar melhor, chamo sua atenção para alguns detalhes. Como o diálogo final entre Greg e Sally; ou as visitas “inesperadas” de Helena à casa da filha; a interpretação de Pauline Collins, que faz a “atriz” que se “apaixona” por Alfie, Charmaine (interpretada pela sensacional Lucy Punch, onde Allen arruma atrizes e atores assim???); a confusão quando duas famílias brigam por conta de uma cerimônia de casamento; a sessão esotérica de “conversa com os mortos”; e tantas outras coisas…

Com uma realidade absurda – exatamente a que vivemos e relutamos em admitir que ela é absurda, na tentativa tola de fazer com que as coisas façam sentido (um raciocínio teimoso que talvez impeça as pessoas de apreciar o filme) – não me espanta que o único desfecho feliz possível no filme seja justamente aquele que depende de fantasia.

Releio o parágrafo anterior e percebo que ele é vago demais – quase abstrato. Mas é isso que me encantou no filme. E é por isso que achei esse filme tão genial. Ri, chorei, passei por momentos aflitos, outros graves, levei sustos, reconheci situações vividas por mim etc. etc. etc. Não é isso que faz da Shakespeare algo tão universal? Ah se Woody Allen soubesse colocar tudo em versos…

E com o encantamento de “Você vai conhecer o homem da sua vida”, digo que o ano cinematográfico fecha bem. Os lançamentos de fim de ano – como “Cisne negro”, que estou louco para ver –, ficam, quem sabe, para a lista de 2011. E quinta-feira vamos dar uma geral pelos bons livros de 2010.

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